O mito de Ícaro retrata que ele e o seu pai, Dédalo, planejaram uma fuga com a utilização de asas feitas de penas e presas ao corpo com cera. Alertado por seu pai sobre o perigo que, devido ao calor do sol, teria de enfrentar com o derretimento da cera caso quisesse chegar próximo ao mesmo, perdeu sua vida ao tentar confrontar a exatidão.
No EP Cidade do Pecado, lançado em dezembro de 2021, Abebe Bikila Costa Santos destrinchou a forma em que as ilusões das metrópoles nos seduzem até que as desilusões sejam deixadas em segundo plano e, por um momento de falso prazer e atração, esquecidas. Icarus é uma evolução desse projeto e todos os outros da carreira de BK’.
O disco adota a utilização da mitologia grega como uma transmissora dos ensinamentos em explicação às relações humanas, trazendo isso para as situações, acontecimentos e vivências brasileiras.
Essa busca por trazer esses assuntos para a nossa realidade se tornou intensiva em Cidade do Pecado, onde Abebe despertou as influências de nomes como Marcelo D2 para que sua arte e suas vivências estivessem translúcidas, em conjunto. Além disso, o rapper vem focando na junção daquilo que gosta e acredita que seja importante abordar, e o lado mais comercial musical, tendo como referência o rapper, ator e produtor André 3000.
Nesse álbum, BK’, novamente, se expõe como o exemplo referencial para os assuntos abordados, trazendo uma alta pessoalidade e originalidade ao projeto, através da demonstração dos medos, inseguranças, ego e outros problemas sociais, causando grande identificação nos ouvintes, que vêm recebendo bem o quarto disco do rapper. Em pouco mais de dois dias de lançamento, já ultrapassava a marca dois milhões de streamings no Spotify, além do autor atingir a posição trinta e sete no Top Artists Brazil.
O projeto apresenta o labirinto com os impecilhos e desafios velados apresentados pelo sistema, e as formas de saída e desafogo encontradas para isso, numa busca por não deixar se enganar pelo brilho das coisas, considerando todos os benefícios e malefícios dela.
Dirigindo a parte musical de Icarus ao lado de JXNV$, BK’ alcançou uma harmonia que, apesar de muito inovadora e diferenciada, bebe da fonte de outros momentos da carreira do rapper, com a mistura dos samples clássicos aos gêneros ritmados. Um dos pontos que mais se destaca na musicalidade do projeto são as melodias e corais presentes, alinhando-se ao ar de clássico.
Em Icarus, Abebe Bikila, diferentemente do que fez n’O Líder em Movimento — onde sentiu que tinha muito a falar e, se fosse ceder espaço a outros MC’s, ficaria algo muito longo —, convidou outros e diversos artistas para ajudarem a construir a história contada no disco, casando perfeitamente com a vibe presente no projeto.
Indo além, BK’ também conseguiu realizar outra coisa não feita em seu terceiro álbum, que foi presentear ao público com uma experiência presencial e, ao mesmo tempo, digital. Trata-se da exposição do quadro de 2m x 2m feito a óleo pelo artista carioca Nikolas Demurtas, numa reinterpretação da tela de “O Voo de Ícaro”, pintada por Jacob Peter Gowy.
Ao apontar a câmera do celular para o QR Code próximo à obra, é possível observar o quadro tomando vida através da tecnologia de realidade aumentada e, com a conexão de um fone ouvido no celular em execução, pode-se ouvir a primeira faixa do álbum. A concepção do quadro surgiu em um retrato de Abebe Bikila numa reeleitura com asas e o skyline do Rio de Janeiro ao fundo.
A exposição estará disponível no Museu de Arte do Rio para ser visitada gratuitamente até este sábado (19), das 11 às 17h. No primeiro dia de visitas, Abebe marcou presença para trocar uma ideia com o público e tirar fotos.
Estive presente no evento de audição do disco para convidados no MAR, na noite de quarta-feira (16) que antecedia o lançamento, e foi uma experiência inexplicável estar ao lado de amigos, conhecidos e familiares de Abebe completamemte encantados e emocionados a cada música. Foi a maior demonstração possível de que as referências, ancestralidade e originalidade presentes em Icarus são de fato verdadeiras, e representam além da sua pessoa, o seu povo.
Dona Ana Gomes, mãe do rapper, sentada numa cadeira ao meu lado em frente à mesa que acontecia a apresentação do projeto, caiu em lágrimas ao tocar “Continuação de um sonho”, onde encontra-se em abundância a retribuição do BK’ em forma de gratidão por aqueles que o moldaram e o mantém vivo.
Ao seu lado, JXNV$ (produtor musical), Diaz (DJ), Gabriel Rec (tour manager) e M$E (DJ) sentiam a primeira conexão com o público desse trabalho que durou longos meses de dedicação, e é tido por Abebe Bikila como o mais difícil de sua carreira, pelo processo e escolhas enfrentadas até chegar a definição final. Para o próximo projeto extenso, o rapper, que havia prometido encurtar o longo espaço entre os lançamentos, pretende levar um pouco mais de tempo, pela dificuldade que é.
Entretanto, no caminho, lançará alguns singles, EP’s e mixtapes, como a em colaboração com o Luccas Carlos e a do seu selo Gigantes, que saem em 2023.