Dissecando a capa do álbum “Esculpido a Machado”, de LEALL

Escrito por Gui Ventura 19/04/2022 às 19:30

Foto: Divulgação

A capa foi considerada por muito veículos de premiação do rap nacional, como a melhor de 2021.

Um ano se passou desde que LEALL apresentou ao mundo o seu primeiro álbum. Bastante premiado por sua consistência e, com ótimas referências e execuções musicais, mas também, pela qualidade de produção da identidade visual.

Considerada a melhor capa lançada no rap nacional em 2021, a identidade visual de “Esculpido a Machado” foi idealizada por LEALL e produzida pelo fotógrafo Marcelo Martins, que explora técnicas sofisticadas e pouco comuns dentro da fotografia, tendo maiores referências dentro do cinema, sobretudo no cinema brasileiro.

O reconhecimento de Marcelo Martins em ter criado a melhor capa de 2021, está atrelado a originalidade e sucesso na execução do trabalho, então resolvi dissecar essa capa, desvendando um pouco das técnicas e referências usadas, através de 2 blocos: conceito e composição, no intuito de mostrar tudo o que torna essa capa, uma excelente porta de entrada para “Esculpido a Machado”.

Conceito

Construído inicialmente dentro do conceito de “foreshadowing”¹, uma técnica de narrativa bastante utilizada no cinema para representar previamente, de forma visual, alguns elementos presentes na obra, é uma técnica interessante para localizar quem ouve, já que todas as informações apresentadas na imagem, se conectam com o conceito do álbum e a narrativa das letras.

Esculpido a Machado é um disco denso, que debate os problemas vivenciados em um ambiente negligenciado pelo Estado. Temas como a criminalidade, a corrupção de menores e a necessidade de contrariar as estatísticas, são os pilares centrais neste trabalho, e por esse caminho, se constitui o conceito da capa.

¹Foreshadowing de Midsommar, 2016 (Ari Aster)

Composição

À primeira vista, a imagem de LEALL apontando uma arma para o seu próprio reflexo, choca. No mesmo momento em que duas crianças, vestindo o uniforme escolar da prefeitura do Rio de Janeiro, jogam bola ao lado do primeiro evento descrito. Essas duas peças centrais, são fundamentais para conectar a parte visual com a narrativa do álbum, e serão elas, os protagonistas da análise.

As camadas dos planos é algo bem explorado na composição da imagem. Em primeiro plano, LEALL aparece mirando um arma pro seu próprio reflexo, evento que conecta diretamente o primeiro plano com o segundo, seu reflexo no espelho. Em terceiro e último plano, a mesa, que é utilizada como suporte para o espelho, e as duas crianças brincando ao fundo.

Separar a ideia dos planos é importante, porque através deles, Marcelo utilizou uma técnica que dispõe os interesses da foto de forma triangulada², no intuito de distribuir as informações e, indiretamente fazer o público observar atentamente os mínimos detalhes em cada uma das zonas do quadro.

²Composição triangulada

As cores que compõem a obra são bem densas. Os contrastes e realces foram ferramentas bastante exploradas e, remetem a colorização de algumas cenas do filme “Cidade de Deus”³. Os personagens principais foram bem contrastados e se destacam dentro do realce trazido pelas partes claras da cena, o que forma um contraste que ajuda a entender melhor a imagem, dentro da grande quantidade de informações apresentadas.

Ainda no gancho da composição das cores, é interessante perceber que o padrão cinza do cenário utilizado, é dividido por dois elementos da foto, a camisa amarela da seleção brasileira utilizada por LEALL, e seu reflexo no espelho, que como um portal, mostra o verde das folhas e o azul do céu presentes no lado ‘oculto da foto’, fazendo relação com a frase presente na faixa “Lamentações 2:19”; “Se a porra da vida fecha a porta / Pai, eu vou ter que abrir”. Analisando os dois eventos, é possível interpretar a cena do reflexo como a ruptura da realidade narrada no disco.

³Colorização do filme Cidade de Deus, 2002 (Fernando Meirelles, Kátia Lund)

O elemento que dá a capa o tom da vivência brasileira, são as cores utilizadas na composição. Além da camisa da Seleção Brasileira que LEALL usa, que tem a função empregada de localizar quem o ouve, o espelho reflete o verde das árvores, o azul do céu e da cadeira e, o amarelo da blusa e o branco das nuvens ao meio, sendo assim, a construção de uma metáfora para representar a realidade brasileira, tornando o reflexo de LEALL em uma nova “Bandeira do Brasil”, contrariando diretamente, a frase positivista “ordem e progresso”.

Por fim, a capa apresenta uma tarja de classificação indicativa na parte superior, descrita como “violência extrema e linguagem imprópria”, no lugar do tradicional aviso de conteúdo explícito, o que mostra mais uma vez, as referências do cinema na criação desse trabalho.

Ainda que a composição diga muito sobre o trabalho, a execução e pós-produção da capa abriu brechas para outras interpretações. É perceptível que foi aplicado um efeito de suavização em todo o quadro fora do espelho, o que também é uma técnica utilizada no cinema para representar pensamentos, sonhos e lembranças, o que faz pensar que os meninos brincando ao fundo, podem representar uma lembrança vivenciada por LEALL na infância. 

Em meio ao caos narrado no disco, se lembrar de uma época onde a vida era mais tranquila, talvez seja uma forma de manter a esperança em quem ainda vive a infância, sabendo que o tema de corrupção de menores, é frequente no álbum.

Contudo, o que torna a capa de “Esculpido a Machado”, a melhor produzida em 2021, foi a inteligência de direção fotográfica do Marcelo, que converteu perfeitamente as músicas em um formato visual, mas sem tirar a experiência do público ter as próprias interpretações da capa com base nas rimas, uma das maiores magias da música.

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