Por que Racionais Mc’s não é visto como o NWA?

Bom, antes de mais nada gostaria de deixar claro que, por mais que o título possa ser um tanto quanto polêmico, não tenho o objetivo de fazer uma contraposição entre NWA e Racionais.

Muito pelo contrário, enxergo ambos como grupos musicais, pertencentes ao mesmo contexto e que dialogam-se em muitos pontos. Entretanto, o que instiga a minha curiosidade e me leva a promover esta análise é entender os motivos que levaram o NWA a alcançar um sucesso e respeito mundial, enquanto até hoje internamente, Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock, sofrem com preconceitos e a desvalorização de seu trabalho. Assim, a grande questão que nos faz presença, é entender quais são os fatores que influenciaram o protagonismo, glamour, respeito e admiração de seguidores ou não do NWA e porque os Racionais não são vistos com tanta importância por outros setores da sociedade, além dos fãs de RAP.

Veja bem, é interessante, primeiramente, destacar que tenho tamanha consciência do que representa racionais para a geração dos anos 90 e 2000. Mano Brown se faz presente como um grande herói de uma população marginalizada que estava destinada ao fracasso e a criminalidade. Muito mais do que devolver auto estima para o seu povo, os Racionais tiveram a capacidade de tornar-se porta voz da periferia paulista e brasileira no todo, além de chamar atenção para as mazelas que assolavam as áreas desabastecidas pelo Governo. O que me incomoda, é saber que a sua importância para a conjuntura sociocultural, é muito maior do que se é divulgado, não se tem uma valorização tão grande do Brown, que ao meu ver é o maior cantor e compositor brasileiro vivo e em atuação.

Por outro lado, não posso permitir espaço para más interpretações. Por isso, venho deixar claro que meu objetivo não é desqualificar o Niggaz Wit Attitudes (NWA). Falar sobre rap norte americano é falar sobre a trajetória musical desse grupo que marcou uma nova era para a indústria musical norte-americana. Desse modo, vamos explorar um pouco mais os feitos protagonizados pela NWA nos Estados Unidos e Racionais mc’s no Brasil, a fim de traçar pontos comuns aos dois e também mostrar alguns notáveis diferenças nessas duas caminhadas.

KANSAS CITY – JUNE 1989: Ice Cube, Eazy-E, MC Ren. DJ Yella (front), and Dr. Dre, rapper Laylaw from Above The Law and rapper The D.O.C. (rear) poses for photos before their performances during N.W.A.’s ‘Straight Outta Compton’ tour at Kemper Arena in Kansas City, Missouri in June 1989. (Photo By Raymond Boyd/Getty Images)

NWA (Negros com atitudes) foi um grupo formado em 1986 por Ice Cube, Dr Dre, mc Ren, Arabian Prince e Yeazy-e. Originários de Compton, uma das cidades mais violenta, preconceituosa e intolerante dos Estados Unidos. Vale destacar que por conta de seu passado escravista, os estados sulistas são caracterizados até hoje por atos racistas misturados com abuso de autoridade e violência policial. Temáticas que influenciaram diretamente nas composições feitas por Ice Cube e interpretada por Eazy-E que era o único que incorporava fielmente o estilo Gangsta Rap, entoado nas letras. Afinal, antes de entrar pro grupo, Eazy-e era componente dos Crips – gang local que tinha o intuito original de proteger a comunidade, porém modificou de estrutura com a entrada para o comércio de drogas –, por isso ninguém melhor que ele para cantar os famosos versos que exaltavam o estilo de vida bandida dos moradores de Compton, porque era essa a forma que se tinha para sobreviver.

“Straight Outta Compton”, lançado em 1988, foi sem sombra de dúvidas o álbum de maior relevância não só para eles, mas também para o mundo do hip-hop. Letras marcantes com versos violentos que refletiam toda a conturbada vida dos negros norte-americanos, que além de lidar com as dificuldades inerentes a falta de assistência do governo, como miséria, pobreza, vícios e afins. Sofriam dentro de suas próprias comunidades com a violência das autoridades locais, as quais em sua maioria saíam em leso de todas as acusações. Assim, a música “Fuck tha police”, nasce como um grito de desabafo de centenas de anos de estupro, morte, violência praticada pela polícia contra o povo preto, simplesmente por representarem o estereótipo de um criminoso. Esse, como outros sucessos, pertencentes a esse disco foram responsáveis por alavancar mais de 3 milhões de cópias do álbum, sendo considerado até hoje como um dos mais influentes da história do hip-hop. Podemos dizer que no mundo do rap existe dois momentos: antes e depois de NWA.

Por conta de divergências internas entre Cube, Eazy-E e o empresário Jerry Heller, o grupo começou a se desmantelar. Dr Dre, seguiu os mesmos passos de Ice Cube e saiu do grupo em 1991 por meio de brigas judiciais. Assim, o que foi considerado o grupo musical mais violento do mundo, perde sua força após 5 anos de estrada. DJ Yella após largar o segmento musical decidiu se aventurar como produtor de filmes pornográficos, Mc Ren continuou a sua carreira, porém não alcançou o mesmo sucesso que seus ex-colegas. Eazy-e, falece em 26 de Março de 1995 vítima da Aids, tornando-se antes um grande porta voz da causa, que até então era vista de forma extremamente preconceituosa. Assim, Ice Cube e Dr Dre foram os que conseguiram dar continuidade ao tamanho legado deixado por eles, tornando-se figuras de ampla importância mundial e sendo reverenciados pelos seus feitos dentro e fora do mundo musical.

Racionais mc’s – nome inspirado no disco “Racional” de Tim Maia -, está inserido na mesma época e contexto da NWA. Grupo que iniciou-se em 1988 e mantém sua formação original até a atualidade, composto por KL Jay, Edi Rock, Ice Blue e Mano Brown. Pertencentes ao Capão Redondo, bairro mais perigoso e o mais violento de todo Brasil na década de 80, cresceram vendo e convivendo com o desrespeito, abuso e violência das autoridades policiais. As letras compostas por Mano Brown, recitam o mesmo sofrimento e angústia do jovem, periférico e negro, relatado por Cube. Racismo era e ainda é inerente para a realidade de muitos daquele local. Assim, foram ganhando espaço pouco a pouco e sempre com músicas voltadas para a difícil realidade que é crescer naquelas precárias condições. A raiva e ódio personificados na voz do Mano Brown são sinais latentes do poder que eles possuíam, sendo responsáveis diretamente por falarem por aqueles que não tem voz. Não tenha dúvida que Racionais foram responsáveis por salvar milhares de vidas que estavam pré-dispostas a entrarem para o mundo do crime. Mas, que repensaram a sua trajetória ao ter uma referência negra em atividade, lutando por melhores condições de vida e pela retomada do orgulho do seu tom de pele, tão discriminado. Mano Brown, Kl Jay, Edi Rock e Ice Blue são muito mais que simples artistas musicais. São líderes revolucionários assim como King e Malcolm X, utilizando da música para promover o seu ativismo político.

“Sobrevivendo no Inferno”, foi o disco de maior relevância e importância musical para a sua carreira. Lançado em 1997, alcançou a expressiva marca de estar situado na 14° posição da lista dos 100 melhores discos da história da música brasileira. Apesar de ter sido lançado por uma gravadora independente, promoveu cerca de 1.500.000 de cópias, circulando por todo o Brasil e ganhando renome internacional. O disco possui suas famosas letras, como “Capítulo 4, versículos 3”, “Diário de um detento”, “Fórmula Mágica da paz”, entre outras. A expressividade desse disco é tamanha, a ponto de ter sido entregue ao papa Francisco, em 2015 pelo então prefeito Fernando Haddad, em uma visita ao Vaticano. Esse acontecimento é de extremo simbolismo, afinal um autoridade local reconheceu a riqueza contida nas suas canções – que em sua maioria fazia intensas reivindicações do descaso que era ser preto, pobre e viver na cidade paulista -, para a maior figura representativa da Igreja Católica. Além disso, pela primeira vez, em 2020 o álbum foi incluído como leitura obrigatória de um vestibular da UNICAMP.

Racionais mc’s é mais do que um simples grupo de rap brasileiro. Assim como no cenário norte americano, pode-se fazer a separação de um momento anterior a chegada do NWA, no que diz respeito a expressividade, importância, notoriedade e influencia, deve-se fazer essa separação: Antes e Depois de Racionais. Em 2007, o então Senador Eduardo Suplicy, chegou a recitar parte da música “Homem na estrada”, no congresso que discutia-se a redução da maioridade penal. Talvez a fidelidade na interpretação da letra, tenha influenciado a gargalhada dos seus colegas de bancada e também do público, o que veio a se tornar motivo de piada. Entretanto, “pode rir, mas não desacredita não”, as pessoas não compreenderam a real força que possuía esse feito para a sociedade, pro cenário musical e para o grupo. Como disse acima, ao meu ver, Mano Brown é o maior cantor e compositor vivo da música brasileira, ou seja incluo todos os mais variados segmentos musicais. Ouso a você pensar qual outro cantor conseguiu compor músicas de até 12 minutos, com letras que refletiam a realidade racista e abusiva que é característico das periferias de todo o Brasil, com a capacidade de fazer com que seus seguidores decorassem de forma rápida e fácil. Sua voz pode não possuir o timbre mais harmônico, porém é extremamente única e irreconhecível. Desafio a você achar um melhor intérprete do que Brown, que consegue de forma brilhante, transmitir a raiva, sofrimento, angústia e revolta de suas composições. Você sente o sangue e a dor em suas palavras. Ele falou por multidões e multidões acompanharam a sua oratória. Assim, como Jesus fazia para seus seguidores, Che Guevara em seus comícios, Malcolm em suas palestras e King em suas pregações.

Não acho que preciso gostar de rock para saber da importância dos Beatles, de Reggae para reconhecer Bob Marley, de blues para admirar BB King, de MPB para respeitar Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Assim, como não é necessário ser fã de RAP para ajoelha-se e admitir o simbolismo e o gigantismo inerente ao Mano Brown. Será que a forma desprestigiada que se olha para ele é reflexo do ainda preconceito latente que existe com o RAP no todo? Será que é por conta da forma de se vestir ou pelas gírias características de pessoas oriundas de uma favela paulista? Será que é por conta de seu tom de pele, a classe que fala e o perigo sentido pela a classe média? Será que é por conta de seu posicionamento político consciente e provocador? Será que vai ser necessário ele MORRER, para que, enfim, possamos enxergar a genialidade que ele carrega e reverenciar o seu magnífico trabalho? Vivemos em uma época que nos falta referências que representem o verdadeiro pensamento do povo brasileiro, não vamos esperar a morte de um ídolo nacional, para valorizar a sua importância. Afinal…

“Nosso espírito é imortal, sangue do meu sangue
Entre o corte da espada e o perfume da rosa
Sem menção honrosa, sem massagem
A vida é loka, nêgo
E nela eu tô de passagem
Oh Dimas, o primeiro
Saúde guerreiro!

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