A Tríade Negra Revolucionária do Rap (Djonga, Baco Exu do Blues e BK’)

Escrito por Fellipe Santos 29/05/2019 às 08:10

Foto: Divulgação
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Primeiramente, antes de iniciar este meu artigo, gostaria de deixar evidenciado alguns pontos principais que irão facilitar o entendimento e a interpretação a respeito deste trabalho. Sou estudante de História e caminhando gradativamente para a área de discussões étnicas e raciais. Explícito esse fato de imediato, pois por ter como área de pesquisa a importância da musicalidade como forma de denúncia social, tenho que estar com os ouvidos atentos e treinados para perceber quando algum MC está dialogando com essa minha linha de estudo. Obviamente qualquer outro seguidor tem totais capacidades de fazer o mesmo, entretanto é praticamente a minha obrigação perceber quando algum rapper utiliza de conceitos acadêmicos em seus trabalhos. Assim, como naturalmente, um educador físico terá mais facilidade e propriedade para argumentar sobre a anatomia humana. Um advogado quando o assunto for o código penal e por aí vai.

Dessa maneira, por estar tendo contato diário e com uma vasta leitura sobre o recorte africano, apresenta-se como essencial ter a percepção de quando novos artistas estão surgindo com uma bagagem diferenciada. Levantando conceitos acadêmicos de um grande pensador martinicano (Martinica é uma ilha caribenha de domínio francês) do século XX, que influenciou o pensamento de Paulo Freire e seu ativismo serviu de base para a Revolução Argelina. Assim, quando uso o termo “Revolução”, pode soar a primeira impressão, muita presunção e desconhecimento da minha parte. Porém, introduzo esse conceito na raiz do seu significado, ato de revolucionar, quebrar um estrutura vigente consolidada e apresentar uma outra vertente. “Grande transformação, mudança sensível de qualquer natureza, seja de modo progressivo, contínuo, seja de maneira repentina”

Nessa perspectiva, Baco, Djonga e BK são revolucionários no RAP nacional ao evocar Frantz Fanon em seus trabalhos autorais. Fanon, como já mencionado acima, foi um psiquiatra, pensador, poeta e ativista muito importante para a causa racial e para o movimento negro. Seus trabalhos possuem extremo valor internacional e seu nome está figurado como um dos mais importantes escritores africanos que promoveram o estudo racial e o processo de descolonização. Suas as obras mais conhecidas são “Pele negra, máscaras brancas (1952)” e “Os Condenados da Terra (1961)”.

Seguindo essa linha de raciocínio, esses três rappers mencionados conseguiram trabalhar de formas distintas, os conceitos e a ideologia desenvolvida por Fanon. Posso estar sendo equivocado, porém não me recordo de nenhum outro MC que tenha utilizado de algum filósofo africano em suas músicas, álbuns, ilustrações e qualquer outro segmento. Naturalmente, o RAP por ser um instrumento de transmissão cultural, trabalha-se muito em cima de metáforas, analogias e citações filosóficas. Entretanto, essas em sua grande maioria, sempre são oriundas de pensadores brancos, europeus e por contextos de época, quase todos racistas. A inovação, portanto, ou melhor, a revolução, não está no fato de utilizarem de conceitos sociológicos e acadêmicos, isso já ocorre há bastante tempo. Mas, sim, no fato deles proporem uma contra narrativa, contando a história de opressão e marginalização do pobre, preto e favelado, por meio de um filósofo que estava inserido dentro das mesmas características. A filosofia Ubuntu, carrega consigo o mantra de “Nós por Nós”, ou seja, nós pessoas pretas iremos reescrever a nossa história e seremos responsáveis por conta-las. Não mais, será um estranho colonizador que irá dizer o que somos, como nos comportamos e quais são os nossos limites. Dessa forma, irei destrinchar Baco, Bk e Djonga separadamente, a fim de demonstrar quais foram as maneiras que eles utilizaram e de que forma reproduziram os conceitos abordados nas obras de Fanon.

Baco exu do blues, baiano nascido em Salvador e recentemente completado 23 anos de idade. É um nome muito forte dessa nova geração de RAP e já alcançou alguns feitos relevantes nesse início de carreira, como tendo sido eleito pela revista Rolling Stones, por meio do álbum Bluesman, como o melhor do ano de 2018. Alcançou maior destaque nacional por meio da polemica e agressiva música “Sulicídio” composta por ele e pelo Diomedes e posteriormente pelo single que virou hit na boca do povo “Te amo disgraça”. Assim, ouve-se muitas críticas ao cantor e muitas dessas giram em torno de tentar simplificar seu trabalho, reduzindo-o a um mero cantor de Love Songs. Bom, não pretendo levantar esse debate, até porque não vejo isso como um demérito, entretanto, compreendo que seu trabalho é muito mais profundo do que alguns pensam. Assim, o foco maior é entender qual a relação do álbum Bluesman com Frantz Fanon.

Desse modo, entendo que uma das premissas necessárias é tentar destrinchar qual foi o objetivo do Baco, ao lançar este trabalho grandioso, ao meu ver, e as suas implicações. Na minha interpretação, Baco utiliza do Blues como metáfora para reivindicar e protestar contra todo um processo de aculturação cultural histórica que se faz com todo e qualquer tipo de reprodução intelectual dos negros africanos. Assim, a colonização e o imperialismo não teriam sido responsáveis apenas pelo genocídio negro, roubo e usurpação dos recurso naturais contidos nos países africanos. Mas, como também pela manipulação e domínio das nossas tradições culturais. Blues, seguimento musical negro que surge como forma de desafogo e lamentação, da condição de escravo que foi atribuída ao povo negro e teve maior disseminação inicial nas fazendas norte-americanas. Por conseguinte, esse estilo musical que antes era reprimido por se tratar de um rito musical africano, passou a ser aceito quando o homem branco começou a se apropriar, inserido ares de sofisticação com artistas brancos fazendo parte dessa cena.

Baco, explícita essa ideia na música Bluesman de forma bem clara e didática, como podemos perceber nesse verso inicial que dá nome ao seu álbum.

“A partir de agora considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues
Eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto era do demônio
E depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de Blues
É isso, entenda
Jesus é blues”

Na obra “Em defesa da Revolução Africana”, Fanon trabalha ideologicamente a forma que se deu o projeto colonial e como foi necessário a produção de teorias científicas raciais, para que justamente conseguisse dar legitimidade a forma desumana e bestial que circundava o processo de escravização do negro africano. Nesta perspectiva, é interessante colocar uma citação de sua obra e naturalmente irão perceber o diálogo que Baco conseguiu promover com o intelectual martinicano.

“É assim que o blues, lamento dos escravos negros, é presenteado à admiração dos opressores. É um pouco de opressão estilizada que agrada ao explorador e ao racista. Sem opressão e sem racismo não haveria blues.” (FANON, 1969)

Logo, percebe-se, assim, que o Blues por ser agradável aos ouvidos do colonizador é perecível não somente de sua admiração, mas também da posterior inversão de papéis e o opressor tenta apropriar-se desse canto de lamento negro. Com outras palavras, de forma análoga, percebe que o homem branco não só resolve espancar o homem negro, mas como também acha admirável ouvir o seu gemido de dor. Para, posteriormente, utilizar do mesmo como se fosse de sua patente e promover uma ressignificação para esse choro.

Djonga que recentemente lançou pelo terceiro ano seguido, o seu terceiro álbum (Ladrões), é mais um nome que representa essa nova geração do RAP nacional. Começou a sua carreira artística em sarais públicos de MG e alcançou maior notoriedade após a participação no DV Tribo. Logo de cara já impressionou com o seu estilo agressivo e contundente, estilo que permaneceu em “Heresia”, seu primeiro álbum solo. 2018 foi a vez de gravar “O menino que queria ser Deus” e uma das coisas que mais despertou o gosto do povo, foi a forma categórica e implacável de seus refrões, sempre valorizando a sua ancestralidade, as suas influências musicais e os problemas da contemporaneidade, ainda sendo reflexos do racismo institucionalizado em que vivemos.

Desse modo, é necessário mencionar que ele chegou a cursar História e abandonou no último período em busca de um outro sentido pra sua vida. Entretanto, por estar em um ambiente acadêmico, seu contato com pensadores e intelectuais negros deu-se de forma mais direta e incisiva. Djonga, já tinha deixado claro que sabia quem era Fanon e o seu trabalho desenvolvido, em uma participação na música de Well.

“Frantz Fanon que o diga
Tira essa máscara branca
Iansã que te perdoe
Cês inda’ é revista e vem meter a banca”

Logo, percebe-se justamente o seu conhecimento a respeito de uma das obras mais renomadas de Fanon, que seria o livro “Pele negra, mascaras brancas”. No qual, Fanon desenvolve sua linha de estudo evidenciando que por mais que possamos ter a pele escura, a nossa negritude de diversas formas é silenciada. Desse modo, interiorizamos padrões, normas, conceitos e uma mentalidade completamente branca. Negando, assim, toda a nossa raiz africana e reproduzindo de diferentes formas atitudes racistas com os nossos próprios semelhantes. Como diz o famoso ditado popular “preto de alma branca”.

Nessa perspectiva, percebemos justamente essa situação que foi relatada no clipe lançado sobre a primeira faixa “Hat-Trick”. No vídeo clipe, mostra-se justamente um homem negro com o rosto pintado de branco, simbolizando o que viria ser uma máscara como metáfora do nosso inconsciente. Assim, o clipe desenvolve-se por meio da atitude de alienação do personagem perante o seu ambiente, claramente ele não se sente pertencente aquele lugar e não consegue olhar para os seus semelhantes com um viés de igualdade, mas sim de superioridade. Não adianta ter simplesmente a pele escura para poder ser considerado negro, é necessário reconhecer toda a sua ancestralidade e visualizar nós como um coletivo, só assim será possível a reafirmação de sua negritude. Assim, essa transformação comportamental se dá justamente quando ele tem um contato com a sua vó, resgatando a sua ancestralidade e descolonizando o seu inconsciente racista. Djonga, usou claramente como inspiração a obra de Fanon “Pele negra, mascaras brancas” para a realização não só do clipe, mas do álbum no geral.

 

BK’ é o mais velho entre esses três personagens trabalhados. Tem 30 anos e provavelmente é um dos nomes mais conhecidos no cenário do RAP carioca. Antes de começar a fazer participações, cyphers e fazer parte do Néctar Gang. Trabalhou como videomaker e por isso para muitos foi uma surpresa, ao ter contato com o seu primeiro grande trabalho que foi “Castelos e Ruínas”. Álbum agressivo, contundente e com muita expressividade do que viria ser o estilo a ser seguido pelo mesmo. Assim, “Gigantes” – seu segundo álbum solo – inicialmente causou dúvidas no público, uma vez que percebe-se uma temática de narrativas de histórias do cotidiano, ou seja, Bk’ mostra uma outra vertente e com imposição tornar-se um excelente cronista. O forte instrumental utilizado no primeiro dá lugar a beats mais suaves, o que dá a impressão de querer valorizar o que está sendo contado, colocando a narrativa em primeiro plano.

Desse modo, procurei separar uma faixa desse magnífico trabalho e evidenciar a similitude de temática que acaba dialogando com a obra de Fanon. Deste modo, no terceiro capítulo do livro “Pele negra, mascaras brancas”, o autor desenvolve seu estudo por meio do estigma que carrega um relacionamento inter-racial. O nome do capítulo é “O homem de cor e a branca” e tem como proposta demonstrar explicitamente todo o mito que se coloca em cima do corpo negro. Ele socialmente é visto de uma forma completa exótica e hiper sexualizada, tendo que em todos os atos comprovar a sua expressa virilidade e não podendo demonstrar qualquer tipo de traços emocionais.

Então o sexo com o homem negro sempre vai ser “diferente”, a mulher negra é mais quente, o tamanho do órgão sexual masculino é absurdo e por aí vai. Todas essas características atribuídas a pessoa de cor, delimitam justamente esse pensamento desse corpo não ser igual ao do homem branco, o negro é o Outro. Esse entendimento desse corpo não ser o padrão, o correto, o normal, proporciona diretamente a forma que ele é visto. Sendo, assim, colocado sempre como coisa-objeto.

Nessa perspectiva, toda a música “Exóticos” do álbum “Gigantes”, vai narrando a história de um relacionamento inter-racial. A forma que as pessoas falavam que ele tinha sorte de estar acompanhado de uma mulher branca, o jeito que ela descrevia reafirmando o estereótipo de um vagabundo que não estuda, mas “na cama é aulas” e relata justamente toda essa construção acerca do Homem Negro com cara de mau, violento e afins. Logo, entende-se facilmente o porquê desse nome da música, afinal ela relata justamente essa visão exótica que se tem a respeito da pessoa de cor. Como, podemos perceber nesse trecho. Ele relata a forma de rejeição que se tem com o cabelo crespo, o corpo feminino sendo completamente hiper sexualizado, tornando um verdadeiro objeto. Além disso, reflete justamente essa visão atribuída a pele negra, como da cor do pecado e se tiver algum valor, é exatamente na hora do sexo. O sexo com o homem e a mulher de cor, sempre terá uma narrativa fantasmagórica.

Me compra, eu sou um objeto, diversão
Ela sente tesão, ela sente tesão
Me quer por inteiro me da ordem, fica de joelho
Ela diz que quer se sujar, conhecer o mundão
Diz que eu pareço um gangster

Posso cortar seu cabelo
Bunda africana, esses peitos
Eu acabei com o preconceito
Fui pra cama com um preto
Ele tem cara de mau

Espero que tenha ficado lúcido qual o objetivo desse artigo. Mostrar ao público o ato gigantesco que esses três músicos estão proporcionando, ao trabalhar de forma inusitada e de três maneiras diferentes, com um intelectual africano. Além disso, fica também a reflexão para saber até que ponto Bk, Baco e Djonga tiveram realmente contato com Fanon e quais outros ativistas fariam parte da construção de seus trabalhos. Mas, sem sombra de dúvidas, fica registrado o brilhantismo desses três novos nomes dessa geração atual e que possuem potencial para desenvolverem ainda mais as suas vertentes ideológicas, utilizando da música como uma verdadeira plataforma de denúncia social.

Acabo de apresentar o que, talvez, futuramente, possa ser tornar meu objeto de pesquisa ou até mesmo uma tese defendida em minha monografia. Mais um fato que fica nítido a grandiosidade de talento de Djonga, Bk e Baco, e acima de tudo, era justamente isso que gostaria de deixar em evidencia. A inteligência deles vai muito mais além do que pensamos.

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