É necessário voltar ao começo

Escrito por Fellipe Santos 18/06/2019 às 09:00

Foto: Divulgação
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Presenciamos na última década o grande boom da cultura Hip Hop no solo nacional, diversos artistas foram aparecendo, carregando consigo uma nova roupagem. Se nos anos 90, dominava-se as fortes e contundentes letras de denúncia social encaixadas com o clássico boom bap. Hoje, percebe-se que não apenas os efeitos sonoros foram se modificando, mas também a temática abordada e, consequentemente, o público alvo que iria receber essas canções também.

Assim, pouco a pouco o RAP, estilo musical originário do gueto e representante da classe negra e pobre, que por isso sofria diversos tipos de preconceito, tendo que quebrar inúmeras barreiras para conseguir alcançar uma maior notoriedade, transformou-se em um segmento altamente lucrativo e por conseguinte, de interesse amplo da sociedade. No início as suas letras refletiam as dificuldades inerentes a população que nascia na favela, desprovida de serviços básicos do Governo e que tinha que lidar ainda com a violência policial. Assim, artistas como Sabotagem, Racionais, RZO, Mv Bill, Facção Central entre outros, tornaram-se verdadeiros heróis de uma população que clamava por atenção e por uma voz representativa.

Desse modo, o seu som conseguiu sair dos becos, atravessou cidades, passeou por estados e chegou nos grandes programas de TV, tornando-se até faixa temática de novelas. Nessa perspectiva, conforme foi-se conquistando mais espaço na sociedade e aumentando o número de seguidores, automaticamente foi também diversificando o público que digeria a arte contida em suas letras. Ponto bastante positivo, uma vez que isso foi responsável pela quebra do estereótipo até então vigente, que qualificava todo moleque preto, nascido em uma favela e que estivesse escutando uma música do Facção, como um delinquente cabível de um enquadro e em certos casos serem vítimas da brutalidade de alguns maus elementos fardados.

Porém, o que foi ficando cada vez mais evidente, é que essa possível evolução do pensamento social, era na verdade uma grande armadilha que tentava tirar de foco a manutenção desse mesmo preconceito impregnado na mentalidade geral. O que ocorreu não foi uma transformação da opinião pública, mas sim a formulação do pensamento de acordo com o perfil e grupo social que essa pessoa ocupa. Desse modo, o negro até os dias atuais continua sendo vista por maus olhos, quando passa na rua escutando alto alguma música eternizada na voz do Dexter. Mas, se ele tiver um tom de pele mais claro, uma condição financeira melhor e passar cantarolando alguma música de um estilo mais “underground” causará nenhum tipo de incomodo para aqueles que transitam ao seu redor.

Veja bem, é importante salientar que RAP é arte e arte é uma coisa pública, ou seja, todos tem o direito de aprecia-lo. Na verdade, todos deveriam ter a obrigação de ouvir e prestar atenção nas composições, uma vez que existe uma profunda riqueza contida nas mesmas. Além disso, o RAP possui um cunho educativo muito forte, sendo responsável por conseguir de forma harmônica, quebrar diversos tipos de paradigmas e pré-conceitos estabelecidos em nossa mentalidade. Ao meu ver, esse segmento musical é muito mais que uma variação artística como tantas outras, o RAP na verdade funciona, para aqueles que possuem o ouvido mais atento, como um grande exercício de cidadania. Haja vista que o seu grande objetivo é proclamar por liberdade, representatividade, atenção e um pingo de humanidade para todos aqueles grupos que historicamente nunca foram centro de debates políticos. Ele é a resposta mais bem acabada de uma sociedade que enxerga os oprimidos, simplesmente com um olhar de desdém. Foi assim que surgiu esse contra-ataque, essa contra narrativa que tende reivindicar um simples olhar de humanidade para com todos aqueles que morrem de fome, frio e sem nenhuma perspectiva de melhora.

Ele é gigante, completo e demasiadamente amplo. Tem espaço para falar de crime, violência policial, abuso de autoridade, estupro, machismo, desigualdade social, racismo e tantos outros casos de opressões. Mas, também tem um grande espaço para falar sobre solidão, medos, angústias, amores, sonhos e todos aqueles sentimentos subjetivos que complementam o nosso lado humano. Ele cresceu, as pessoas que hoje cantam e compõem, diversificaram de perfil conforme o passar dos tempos. Hoje vemos preto, homem, mulher, branco, artistas trans, pobre e até playboy. Há espaço para isso também, RAP clama por liberdade não só individual, mas principalmente a de expressão.

Todos possuem o dever de ouvir e aqueles que sentem-se confiantes o bastante para adentrar nesse segmento, que vá adiante. Não tem problema. O ouvido do público funciona como o melhor julgamento, o receptor que irá receber essa mensagem tem a qualidade máxima de compreender quando essa informação transmite verdade e sentimento, ou quando simplesmente está tentando a todo custo fazer sucesso em cima do que hoje em dia está em alta. O RAP tem espaço para tudo! Só não tem espaço para falsos MC’S que se auto nomeiam dessa forma, porém não são merecedores de serem qualificados assim. Não carregam verdade em suas letras e as suas vivencias não são dignas de serem ouvidas.

Como diria o grande rapper Sabotagem – que esteja em paz -, “O RAP é compromisso, não é viagem”. Tem que ter compromisso e responsabilidade para entrar nesse mundo, tem espaço para todos, mas não são todos que merecem esse espaço. A sociedade naturalmente está se transformando e a música não vive alheio a essas modificações. Mas, o que jamais pode-se perder é a sua essência, nossa música é de mensagem e não de mero entretenimento. Tem muitos artistas que estão em alta, porém construíram um castelo de areia, não possuem base. Eles mesmos serão responsáveis por sua queda. Se vendem por dinheiro e não entenderam que nosso estilo musical surgiu justamente para questionar quantas vidas são mortas por essa procura desenfreada pela riqueza.

Faço essa crítica, não direcionada para algum artista específico, porém naturalmente irão imaginar alguns nomes. Nem muito menos estou questionando essa nova geração que está surgindo de forma generalizada, pelo contrário. Existem muitos que estão cientes da sua importância, que possuem extrema qualidade e que compreendem a real mensagem que deve ser passada. Conseguindo, assim, dar continuidade ao verdadeiro RAP transmitindo as vivencias necessárias para dar conta de tamanha grandiosidade. Hoje em dia qualquer pessoa que abre um aplicativo de DJ, entope suas canções de auto-tune e sai rimando qualquer abobrinha, se intitula como MC e além disso diz que está inovando cantando RAP, Trap ou qualquer outra variação, sem ao menos saber do peso que isso carrega.

Por isso é necessário voltar ao começo. Quando os caminhos começam a ficar confusos e escorregadios, faz-se necessário esse exercício de auto-reflexão para não se perder nas armadilhas da vida. Quem não sabe da onde veio, não tem como saber pra onde vai. Sem sombra de dúvidas, todos artistas possuem o direito de lutarem para serem valorizados e receberem de acordo com a qualidade do seu serviço. Sem dinheiro no mundo que vivemos é impossível de viver. Mas a vida é um campo minado, é primordial ter bem claro em mente, quais são seus objetivos principais e aquilo que você bota como premissa de sua carreira. Quem vive por dinheiro se prostitui de diferentes formas, rapidamente será engolido por esse mundo volátil, o qual estamos vivendo e irá morar no vale do esquecimento. Entretanto, aqueles que lutam para realizar os sonhos por meio de suas canções e honram o microfone, trazendo consigo ricos valores e disseminando seus conhecimentos, com muita persistência, irão conseguir gravar os seus nomes na história musical do RAP nacional. Em meio a tempos sombrios e de falsos representantes, é sempre vital lutar por aquilo que vale a pena e que tem sentido em nossas vidas, enquanto ainda há tempo. Por isso é necessário voltar ao começo.

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