Psicodelic é o quarto álbum de Gustavo Vinicius Gomes de Sousa, mais conhecido como Coruja bc1. Surpreendente e inovador em todos os aspectos, desde os títulos que dão nome as músicas encaixados de forma extremamente original, até mesmo as variações rítmicas propostas dentro do mesmo disco. Passeia pelo boombap, leva uma pegada acústica, um pouco de trap e até mesmo samba.
Álbum extremamente rico culturalmente e que merece ser digerido de forma lenta, para que seja possível captar todas as mensagens por trás das canções. Possui quatorze faixas que estão muito bem organizadas, iniciando com um discurso político mais ativo e problemático. Transporta para a subjetividade masculina, revelando os seus medos, amores e sonhos. Assim, finaliza seu disco com uma mensagem especial e original para todos o seu vasto público. Não tenho dúvidas de que esse álbum já figura como um dos melhores do ano.
Lágrimas de Odé
Na cultura africana Odé (Oxóssi) é a representação do orixá da caça e que possui na mata ou florestas o seu local de maior presença. Segundo a mitologia africana, Odé foi treinado pelo seu irmão Ogum – orixá da guerra – para ter a capacidade de proteger a sua tribo enquanto ele estivesse fora. Por esse motivo, Odé é visto como um guardião popular, figura de segurança e imposição.
Só tenho uma flecha eu não posso errar
A morte já não pode me vencer
Não deixei a guerra entrar em nosso terreiro
Se é nós contra nós, nós que morre primeiro
Assim, nessa primeira faixa do disco, Coruja começa narrando um relato pessoal que marcou o início de sua trajetória, evidenciando as dificuldades e a constante luta que enfrentou durante muito tempo. Desse modo, ele rapidamente percebeu que não haveriam muitas oportunidades para melhorar a sua vida, tinha apenas uma flecha e não podia errar. O medo e o perigo era algo inerente a sua realidade, mas não poderia permitir que a guerra entrasse e tomasse conta de seus atos. O sistema proporciona justamente isso, uma guerra que é travada entre nós mesmos e o desfecho é apenas um: Genocídio da população periférica e preta.
Em contra partida, Odé possui o arco e a flecha (Ofá) como instrumentos de batalha e é corriqueiramente homenageado como o “caçador de uma flecha só”. Assim, Coruja faz de forma muito inteligente essa associação de significados religiosos com a realidade que ele pretende passar na letra. Odé é responsável pela proteção, por isso não pode deixar a guerra entrar no terreiro e suas lágrimas seriam a representação desse lamento pela forma descartável que é vista o corpo negro na nossa atual sociedade.
Fogo
Segunda faixa do álbum já é bem indicativa pelo título. Coruja compreende que faz parte de uma nova geração do cenário do hip-hop e não tem a pretensão de ser algo passageiro. A representação de uma pessoa que vem da onde ele veio e a caminhada que está trilhando, é algo muito sintomático e ele interpreta bem esse processo. A ascensão social e transformação de sua realidade por si só já é uma forma de protesto e de reinvindicação, por mais irônico que isso possa parecer. Uma vez que está conseguindo quebrar estereótipos e mudar a narrativa programada pra todo moleque periférico que desde novo já possui um caminho pré destinado pelo sistema. Esse novo álbum veio pra botar fogo e consolidar definitivamente não só ele, mas como o que ele representa (a sua quebrada) no jogo.
Nós com grana já é protesto
Irônico meio indigesto
Olha nós roubando a cena
Porra!, sejamos honesto, então
Essa é pra botar minha quebra no jogo
Essa é pra botar minha quebra no jogo
Apócrifo
Apócrifo que seu significado remete a uma “obra religiosa destituída de uma autoridade canônica”, é o título que dá continuidade ao álbum de Coruja. Assim, talvez o mesmo quis dizer por meio dessa nomenclatura, a forma mais aprofundada que enxerga o seu trabalho. Algo extremamente valioso, poderoso e que simplesmente ainda não foi lhe dado oficialmente o seu devido valor. Assim, essa letra aliada ao clipe, faz bastante referência ao momento conturbado e crítico que estamos vivendo tanto no RAP, quanto no contexto político geral.
Robôs projetam dislikes, qualidade se ver por like
Exigência é mentir no mic, contabilizando like
É que o novo hip-hop exige idiotas do hype
‘Cêis quer nos bobo da corte ou no cemitério?
Hypam quem brinca com a luta, não que leva a luta a sério
Qual é o textão que nos separa?
Desse modo, entendo essa terceira faixa do álbum como um crítica direcionada aos novos mc’s que estão surgindo na cena do RAP, mas que não carregam consigo conteúdos ricos que poderiam somar nessa cultura popular. Estão baseados em falsos ideais, cantam letras vazias e sem fundamento, simplesmente reproduzindo de forma alienada o que hoje está em alta. Assim, o clipe da música faz essa mesma associação ideológica, mas com um objeto diferente. No caso existe uma crítica explícita a população alienada que elegeu o atual presidente, enquanto o mesmo enxerga-os simplesmente como um fantoche. Algo que eu posso facilmente manipular, posso até mesmo escancarar esquemas corruptos – figura metafórica da laranja – e que mesmo assim permanecerá no controle. Os valores estão invertidos. Como bem finaliza o cantor, fazendo referência ao conceito de Bauman sobre modernidade líquida. Está tudo muito volátil. Era do descartável.
Gu$tavo$
Música feita em parceria com o seu xará, o rapper mineiro Djonga e que introduz esse novo momento pessoal e profissional que estão vivendo. Nos últimos anos alcançaram uma grande repercussão nacional o que proporcionou um aumento considerável em seus públicos consumidores. Entretanto, mesmo com esse crescimento e ganho de poder aquisitivo, os mesmos compreendem a qual classe estão inseridos. Não podendo, assim, jamais ignorar a sua ancestralidade.
Um pardo e um retinto unido, resposta que cala Willie Lynch
Eu fudi o plano dos racista e olha que eu nem sou palmiteiro
Eu grito “Fogo nos racista” eles se escondem ao ver isqueiro
Minha vida ainda é um freestyle e olha que eu já desci do palco
Olhei no espelho pra achar King e só encontrei meu lado Malcolm
Nessa perspectiva, a utopia que muitos caem é justamente após um crescimento social, pensar erradamente que livrou-se de todo o trauma que carrega um corpo negro. Pelo contrário, a união do povo é fundamental para o fortalecimento de nossa luta e também como resistência para aqueles que tentam nos dizimar. Willie Lynch foi um norte americano proprietário de escravos e que utilizava de um terror psicológico, agressões físicas e morais para intimidar os negros escravizados. Mas, principalmente, ele estrategicamente estimulava o conflito interno entre os próprios negros, a fim de facilitar o controle sobre eles, além de ratificar a sua posição de submissão e inferioridade. Por isso, não podemos de forma alguma deixarmos levar por esses falsos caminhos.
Interlúdio
“Composição instrumental com a função de separar partes musicais, litúrgicas ou cênicas”. Mais uma vez de forma bem interessante, Coruja nomeia de modo extremamente inteligente a sua quinta faixa do CD e que marca um divisor temático abordado ao longo desse trabalho. As suas quatro primeiras canções abordavam assuntos mais contextuais, polêmicos, políticos e agora em diante Coruja irá proporcionar ao ouvinte um estilo mais melódico. As suas próximas faixas irão falar um pouco mais sobre sonhos, medos, amores e relacionamentos de uma forma geral.
Mas, para isso Coruja usa “Interlúdio” de forma genial. A faixa se passa por meio de uma sessão com uma provável terapeuta, a qual ele utiliza para fazer esse diálogo com o seu ouvinte. Por meio de uma conversa, conta como foi alguma de suas experiências na infância e como o seu lugar na sociedade foi por ele sendo descoberto e ao mesmo tempo como isso interferiu no seu modo de ver a vida.
Eu confesso que eu ainda não encontrei essas respostas que eu tanto busco, tá ligado?
…
Aí eu falei: “Porque existe rico e pobre mãe?”
Aí ela falou: “Porque o mundo é desigual”
…
Você fala pouco sobre o amor
Me fala um pouco sobre esse campo da sua vida
Meu anjo
Dessa forma, a sua sexta faixa da início a esse novo momento trabalhando dentro do mesmo disco. “Meu anjo” carrega consigo características marcantes. Letra fácil, conduzida tranquilamente por voz e violão que suaviza o arranjo e um refrão marcante que naturalmente se prende na sua cabeça. Além disso, analisando a letra mais profundamente, entende-se justamente essa faixa como resposta para todos os outros problemas levantados no início do álbum. Por mais que Coruja como tantos outros jovens, tenham passado por situações difíceis e lidado desde novo com a pior face desse mundo que vivemos, ainda sim, no fundo sempre iremos buscar uma solução para esse caos. E o amor é a melhor resposta para essa guerra interna.
Amar é o melhor remédio
Cura do tédio
Paz no oriente médio
Uma oração
Dopamina
Substancia hormonal que exerce grande função no controle da libido, sendo popularmente conhecida como “Hormônio do prazer”, por atuar ativamente no controle das nossas sensações corporais. Assim, a letra discorre em cima do efeito que essa mulher causou em sua vida. As descrições feitas ao longo da faixa, enfatizam a situação de hipnose e obsessão misturada com a efervescência inerente a relações com altas cargas sentimentais. Tesão, desejo, aventura, anseios e o desejo maior de sentir tudo isso novamente. Todo esse prazer mais uma vez.
Tipo assalto a banco, cê roubo a cena
Tipo matemático, perito em resolver problema
Se forem seus, mas dispenso algema
Já que seu olhar me prendeu a pensar coisas obscenas
Éramos tipo funk
A oitava faixa do álbum produzido pelo Coruja, traz a visão de um relacionamento marcante, envolvente (por isso comparação com o funk) e que hoje faz falta em sua vida. Gustavo introduz mais do que uma simples desilusão amorosa, muito mais. Na verdade sua faixa baseia-se em muitos relacionamentos duradouros e que foram importante em nossas vidas, deixando marcas e aprendizados que jamais serão esquecidos. Hoje olhamos para trás lembrando daqueles bons momentos e essas memórias refrescam o nosso imaginário. Mas, não fazem mais parte da nossa realidade e isso também é uma fase inerente ao amadurecimento pessoal.
O colchão tá gelado
Deitado com outra e pensando em você
E quando acaba o vazio me invade
E o que era tesão se transforma em deprê
Um acorde
“Um acorde, na música, é qualquer conjunto harmônico de três ou mais notas que se ouve como se estivessem soando simultaneamente”. Assim, em sua nona faixa Coruja reparte ela em três momentos. Na primeira parte, sua música reflete os pensamentos agoniantes desse jovem que está desfrutando de tudo aquilo que lhe foi negado, entretanto a solidão se mantém presente fortemente em sua cabeça. Dando assim até um tom depressivo para essa nova fase.
A um abismo tão grande entre o bastidor
E o show business, até cego consegue enxergar
Desse movo, o segundo verso dessa canção é destinado a retratar o fato de que por mais fortes sejam esses pensamentos desestimulantes ele não pode parar. Coruja tem a consciência de que o sistema quer justamente a sua nulidade, assim, ele tem como missão não descansar até que teus objetivos e de seu povo sem alcançados. É necessário resistir.
Eu não tenho condições de baixar minha guarda nunca
Ou perco o posto
Coruja finaliza no seu último verso recitando de forma poética a agonia que lhe atormenta. Percebe-se que toda a sua luta como rapper e as bandeiras que levanta em pró de uma sociedade mais igualitária, carrega consigo um peso muito forte. A sua vida pessoal em muitos momentos fica deixada de lado em busca de um objetivo maior e isso é preocupante. Uma vez que ao mesmo tempo que ele salva a vida de uma pessoa com suas músicas, acaba também sendo responsável pela sua própria “morte”.
Fui roteirista da solução dos teus traumas
Sem perceber, protagonista da minha própria solidão
Digital Influencer
Novamente o título que dá origem ao single é utilizado de forma muito inteligente. Vivemos em tempos muito voláteis, a internet cada vez mais vai se introduzindo como uma ferramenta extremamente poderosa. Não é nenhum exagero afirmar que hoje somos diretamente doutrinados a seguir o padrão social cibernético que nos é imposto. Assim, surgem diversas figuras representativas desse novo estilo comportamental, mas nem sempre esses “digital influencers” estão aptos para ocupar um espaço de tamanha importância. Desse modo, é exatamente essa crítica contida na letra do Coruja. O perigo iminente que ronda essa pseudo obrigação de tentar transmitir sempre um conhecimento e uma superioridade generalizada, mesmo não tendo total legitimidade.
Sua mente está sobre controle da tua vaidade
Você sabe que não sabe de nada, mas precisa falar sobre tudo
Assuntos rasos também te afogam
Camisa 12
Inovando mais uma vez. Coruja realmente se mostra um excepcional artista e consegue passear entre o clássico boombap, trap e agora o samba. Em dueto com Késia Estácio, eles narram a corriqueira história que tem como cenário a pobreza, o personagem um jovem sonhador que tenta modificar de vida e o enredo o mesmo, que é o vislumbre na clandestinidade como solução para os seus traumas. A “doze” pode ser interpretada metaforicamente como o armamento de doze calibre. O vestiário que foi mandado está relacionado a reclusão da sua liberdade inerente ao regime de cárcere privado. O adversário mostra-se justamente o sistema que sempre coloca-se em oposição a classe pobre e marginalizada. Tendo sempre que lutar não só contra ele, mas também contra as suas armadilhas, as quais existem para impossibilitar o nosso sucesso. Eles querem a nossa derrota.
Passa um filme da sua vida inteira, fudeu
Com adversário no teu ouvido gritando
Perdeu, perdeu, perdeu, perdeu
Perdeu, perdeu, perdeu, perdeu
Ogum
Em parceria com Diomedes, Ogum é a décima segunda faixa desse extenso álbum e evidencia novamente outra característica marcante desse artista: a religiosidade. Coruja em muitas letras ratifica a importância de sua ancestralidade e o entendimento sobre a cultura africana. Mais precisamente, a exaltação ao culto dos orixás é algo muito presente em suas letras, servindo não só de base, mas como também uma proteção para esse caminho traiçoeiro e perigoso que circulamos.
Tô protegido com as roupas e armas de Ogum
Tô protegido com as roupas e armas de Ogum
Kimpa Vita
Kimpa Vita foi uma líder política e profetiza do Reino do Congo no século XVII. Sua figura é de extrema importância e simbolismo de representação da luta pela liberdade de seu povo, frente os interesses imperialistas das nações europeias. Assim, percebemos como que há séculos o nosso povo é desrespeitado, morto e usurpado de todas as formas fomentado por questões econômicas. O sistema não quer e se incomoda com o sucesso de pessoas como Coruja e outros rappers que estão em ascensão. Eles não vão aceitar o seu reinado, só se for morto.
Só nos querem reis com coroas de espinhos
Só nos querem reis com coroas de espinhos
Skr
Assim, sua última faixa do álbum faz um bom balanço que reflete uma marca característica de uma nova geração que está cada vez mais solidificando na cena. O conceito de representatividade é algo bastante debatido e comentado nos dias de hoje. Porém, o significado disso é muito maior do que a simples palavra pode remeter. Psicodelic é um álbum impactante, profundo, extremamente rico em diversidade musical e com uma alta sonoridade. Mas, a marca principal desse trabalho é bem representada nessa canção. Assim, a música carrega consigo de enredo a necessidade de ser forte e saber que essa vida traz muitas tentações. Mas, é imprescindível manter a dignidade, uma vez que falsas companhias sempre estarão por perto para aproveitar-se das situações que lhe foram benéficas. Entretanto, de valores positivos estas são vazias. São aproveitadores e oportunistas, fique sempre atento e focado naquilo que realmente é importante e valioso.
Compre um terreno espere ele rende
Terá o triplo do dinheiro quando quiser vender
Compre corrente, drogas e um hennessy pra beber
Ano que vem vai tá na merda, se teu som não vender