Confira os principais trechos da entrevista que Rincon Sapiência deu para a GQ:
Por Lucas Baranyi.
Com um clipe que já soma 6,7 milhões de visualizações no Youtube, o paulistano nascido e criado na Zona Leste da cidade parece ainda não ter entendido que, com shows marcados na Europa, presença confirmada no Coala Festival – que aconteceu no último sábado (12) – e uma legião de admiradores cada vez maior, ele é uma das maiores esperanças da música nacional.
Esperança não é bem a palavra. Rincon Sapiência já é realidade. Se em 2009 o garoto do bairro de Artur Alvim lançou o single Elegância e ganhou os fãs de rap, foi no final de 2016 que Sapiência estourou para o país, com o clipe Ponta de Lança. Demorou 31 anos, mas Rincon chegou para ficar. Em um semestre, ele lançou o ótimo disco Galanga Livre e apareceu em campanhas da Nike e Budweiser.
Rincon anda, fala e age como quem sabe que a vida não dá muitas oportunidades de ouro. Ao mesmo tempo, parece tentar preservar, com sucesso, o valor das pequenas coisas – seja a educação na hora de pedir uma bebida ou responder tudo o que lhe é perguntado sem muitos filtros.
GQ: Me explica Rincon, Sapiência e Manicongo.
Rincon Sapiência: Rincon partiu de um apelido por causa do jogador de futebol [Freddy Rincón]. Na época ele jogava no Corinthians, em 1998, e sempre que eu voltava da escola passava na frente de um bar e uma rapaziada mais velha tirava um sarro. Aí pegou. Eu curtia o Rincon, que jogava na mesma posição que eu [volante]e foi bem fácil abraçar esse nome. Sapiência veio um pouco depois, quando eu já estava com uma certa caminhada na música. Sempre tive um lance de espiritualidade, de acreditar em signos, astrologia, disco voador, karma, uma série de coisas. Vi uma definição falando que sapiência é o conhecimento das coisas divinas e humanas e achei que tinha tudo a ver com o conhecimento que eu busco. Manicongo era um dos nomes que se davam aos reis no império do Congo, geralmente a pesquisa em torno do continente africano fala muito do período de escravidão, isso é muito retratado em filmes, livros e pouca gente fala do período de nobreza do continente africano, quando o povo de lá eram reis e rainhas e donos do ouro e do conhecimento e tudo mais.
Qual é sua primeira memória musical?
Quando eu já tenho lembrança da minha mãe costurando e eu em casa, me arrumando pra ir para o pré, já tinha música envolvida. Tinha muito o lance de rádio, pagode, música black americana. Michael Jackson é uma memória forte. E lembro que a TV Cultura tocava música cedo, quando eu estava acordando. Tocava muito uma música da Branca di Neve, Nego Dito. Sempre que eu ouço essa música em alguma festa, tenho essa memória.
Qual foi o último disco que você ouviu?
Galanga Livre. (risos)
Curtiu?
Achei bom. Achei o rapaz talentoso. (risos) Eu aderi há pouco tempo ao Spotify, e tô ouvindo muitos álbuns, até porque também coloquei um na praça. A grande maioria das pessoas que eu consumo de música brasileira é gente que tenho simpatia. Mas, no sentido figurado, é preciso saber o que “concorrência” tá fazendo. Tenho ouvido o álbum de Mahmundi, O Terno, Pabllo Vittar. O disco dela é bem massa. Gaby Amarantos, que é um pouco mais antigo, mas tenho ouvido bastante. E rap norte-americano. Migos, Young Thug, Ty Dolla Sign.
E o que foi muito bom em 2017, tirando o Galanga Livre?
Gostei do álbum da Pabllo e o EP do Don L. Achei muito a cara dele.
Com o atual fomento à cultura em São Paulo, a música parou de chegar na periferia?
Eu acho interessante porque, pensando em autoridades, tem uma energia bem conservadora. A gente não tem um presidente, prefeito nem governador que pensam e apoiam cultura. A princípio isso pode parecer uma fase ruim, mas eu acho que tem instigado o público e artistas. Vejo um conteúdo mais ácido, verdadeiro e sincero por conta dessa onda toda, dessa atmosfera hostil. A arte vive um momento forte de inspiração, e os artistas de várias áreas estão com muita vontade de falar e expor algo.
Você parece um cara muito positivo.
Tenho que ser. A gente já cresce na adversidade, e o pensamento lógico nos leva a falar “Puta. E tal coisa? E o dinheiro?” E esse tipo de sentimento embarreira as coisas. Eu miro alto.
Teu discurso vai contra um grito de parte da ala artística que fala sobre a falta de investimento.
De fato está faltando. Mas eu vejo as coisas acontecendo bem: um lançamento legal, uma mensagem boa, um festival massa. Isso é motivador. O próprio Coala, com Liniker, Fióti, Emicida, Rael, eu. Quatro artistas de rap num festival grande, saca? A gente tem que otimizar isso, pegar esse bonde e ir pra cima ao invés de pegar energia ruim e se apegar.
Você é um cara que sempre curtiu se vestir bem, tem música sobre isso [Elegância], trata isso como uma coisa de autoestima para o homem negro. Você era assim desde moleque? Pegou a fase ostentação?
Eu vivenciei essa fase e já tinha minhas ideias a respeito muito bem formadas. É muito louco: quando você valoriza muito a posse, a parte nociva é um moleque de periferia perceber que se não tiver tal tênis ele não será feliz. E aí precisa ter dinheiro. Arrumar um emprego. Mas com um emprego precisa esperar um mês inteiro, e o pagamento nem é muito. Então às vezes os caras vão na prática da grana imediata. Aí que os moleque começa a se jogar em várias fitas erradas. O sentimento da ostentação e da posse tá ligado também à autoestima. Nem sempre a gente se permitiu ser bonito, entrar em determinados lugares, porque a gente automaticamente já colocava barreiras na nossa mente. Quando eu comecei a ver os moleques falando de portar tal coisa, mesmo que seja mentira, ou estar com um perfume tal, carro tal e roupa tal, comecei a ver que os anseios deles já estavam acima e que a confiança e o desejo de pertencer também estavam fortes. A gente fica em desvantagem quando não tem. Essa fase nunca me deslumbrou, mas eu consegui enxergar vários pontos positivos por parte da periferia.
Você fala, em Ostentação à Pobreza, que a pobreza não morreu. Isso é econômico ou você tá falando de algo espiritual ou um valor moral?
Hoje em dia todo mundo tem um celular e vive nas redes sociais. Tudo isso tem a ver com escrever, com ler, mas ainda existem pessoas que não sabem ler. Que leva uma hora pra chegar na escola. As condições da periferia ainda não são as ideais, mas são melhores que outrora, e aí dá a impressão que não existe mais pobreza e todo mundo já tem tudo. Que Bolsa Família é esmola, que cotas para faculdades são esmola, mas é necessário ressaltar que a pobreza ainda não é algo em extinção. Que ainda existem pessoas ganhando três reais por dia. Isso leva também à pobreza espiritual, especialmente quando não dá pra interagir com o mundo em que você vive.
Como você conheceu o rap?
Meu irmão mais velho. Ele fazia uns trabalhos da escola lá em casa e chegavam vários amigos dele com fita, vinil, cassete, e ficavam lá ouvindo um som, dando risada. Eu ficava por perto e, um dia, ele percebeu que eu gostava de verdade e começou a me levar nos rolês. Foi me educando no rap. Com seis, sete anos, eu já estava em contato com a música e já me interessava, principalmente no comportamento, corte de cabelo, esses tipos de coisa. Em 2000 montei minha primeira banda e desencanei do futebol pra me jogar nesse universo.
Você gostava muito desse mundo de entretenimento, mas não era só música, né? Você faz uma porrada de referência de cinema e jogo.
Pô, fliperama, videogame… Eu ia todo mês comprar revista de videogame, sempre curti anime, sempre gostei de desenhar, sempre fui meio nerd de gostar dessa salada toda. Cavaleiros do Zodíaco com desenho com Wolverine e X-Men e rap e rock e televisão e novela. Tudo. Até hoje eu sou assim. Sapiência não é algo que eu tenho: é a busca.
O rap, na tua juventude, ajudou a entender a ter orgulho de você em termos de representatividade? Acha que sua música chega aonde precisa para fazer esse papel?
Com certeza. Quando eu comecei a sair pra virar madrugada, tinha quinze anos. Eu ia pra rolê de clubber e tinha uma rixa com os skatistas. O pessoal via a gente, que tinha esse jeitão de rap e ficavam assustados. Eu chegava no baile com um parceiro que também era pretinho e tal, mas era mais doce. Mais desenrolado. Curtia música eletrônica, usava os kit e tal. A gente tem o coração grande, né? Mas tinha um perfil das meninas que eram mais difíceis [de beijar] e as meninas que eras mais próximas da gente, mas era minoria. Tinha oito pretinhas no rolê, eu tomava seis foras, uma não fazia o tipo e às vezes dava sorte com uma. Quando eu vi que aguentava virar a madrugada fui pra rolê de black music e era outra coisa. Dava pra destravar mais, eu já era mais bonito. O rap tem esse despertar de orgulho – da onde você veio, quem você é. E o ambiente dele, de ser bem aceito e vestir algo que as pessoas não estranhem também ajudou muito.
Galanga é um disco absurdamente plural. Tudo é muito bem feito – mas tudo é muito diferente. Você quer manter isso ou foi momentâneo? Seu próximo disco vai ter algo mais específico?
É uma vontade, até porque cada hora você descobre uma coisa, um som. Mas o detalhe é que eu lancei o meu com 31 anos. Você leva 31 anos pra fazer o primeiro disco e tem que levar menos para lançar os próximos, né? Para os próximos discos, por uma questão burocrática, eu não pretendo demorar tanto. Quero compor, produzir e lançar. Acho que a pluralidade vai continuar, mas eu também tento evitar estigmas nas letras e na musicalidade. Não quero falar só de questão racial ou ser rap com rock ou fazer tal coisa. Quero ter a liberdade de dançar conforme a música e fazer tudo de forma espontânea.
Você acha que o hip-hop facilita a criatividade, por ser tão amplo?
Acho que o rap é a música mais ouvida do mundo porque é a mais plural. Se você curte musicalidade orgânica de bateria, guitarra, jazz, você pode ouvir rap. Se curte eletrônica, modernidade, pode ouvir rap. Se você gosta de um conteúdo cabeçudo, muita informação e referência, pode ouvir rap. Se gosta de putaria e mexer a ‘raba’, pode ouvir rap. As oportunidades que ele te dá como curtição, entretenimento e pluralidade são inúmeras, e você pode ter tudo isso no mesmo repertório. Ouvir uma ideia muito foda de um artista com uma temática social, e numa outra faixa ter uma música pra transar, e em outra pra curtir no baile.
‘Ponta de Lança’, ‘A Noite É Nossa’ e ‘Meu Bloco’?
Exatamente. (risos) O trunfo do rap é esse. E ele ainda tem suas segregações, também é um gênero machista – temos menos mulheres atuando – mas ainda assim, se eu pensar em rock, sertanejo… Talvez tenha menos mulheres ainda, sabe? No rap eu ainda encontro os gays, as mulheres, São Paulo, Ceará, Minas Gerais, Distrito Federal, Curitiba. Rap tem muito a resolver, também, mas a pluralidade dele é um ponto forte.
Volta Pra Casa se divide em duas partes – em uma delas você fala da mulher que tem medo de estar sozinha na rua à noite. Como você se envolve, enxerga e vive neste universo?
Acaba sendo um compromisso. A gente nunca é levado a pensar no recorte de gênero. Até eu compor Amores Às Escuras, sempre falei de questões raciais na perspectiva do homem. A gente leva um tempo pra ter um estalo e a própria cobrança das mina, até você ver que não é igual. Ambos são oprimidos da mesma forma, mas a diferença entre homem e mulher existe. Com o tempo você cria sensibilidade, mas de forma alguma tento me colocar na posição de desconstruidão e tudo mais. Até porque não sou. Parte muito da situação de eu ter muitas amigas envolvidas neste tipo de causa, de posicionamento, e essas pessoas estarem sempre comentando. Aos poucos vamos tentando melhorar e ser o mais contemplativo possível.
Toda vez que alguém da periferia começa a fazer sucesso, chega alguém pra falar que ele se vendeu. Pra você é ainda pior, porque as marcas já estão te amando: Budweiser e Nike te meteram em campanha. E aí?
Tem vários pontos: ao mesmo tempo que você tá falando isso, quando eu não tava na ascensão de hoje as pessoas tem a síndrome do menos-famoso-mais-legal: sempre que alguém se destaca, você não é tão daora assim. E sorte a minha, né? Eu até entendo quando tem uma ética massa, do ponto de vista das pessoas. Chega um momento que a gente tem que gostar mais da gente do que das pessoas. A gente precisa fazer o melhor. Não quero ser hostil com o hip-hop, mas você precisa fazer algo que é bom pra você antes de falar “o que o hip-hop vai achar”. Eu lancei Ponta de Lança pobre. Tinha feito o último show de 2016 no começo de dezembro e tava sem agenda, sem nada. Aí a música bombou e foi muito louco de ver os números crescendo, mas até chamarem pra fazer show tava ruim. Ou você se abstém da vida em torno do capital ou você se fortalece em torno dele. E eu tô num processo de me fortalecer em torno dele. Tô tirando minha carta agora, sabe? Com 31 anos de idade. Vou pegar meu carro agora. Tô começando a fazer as coisas pra um filho de 9 anos. Preciso pensar em mim. Cuidar de mim. Cuidar da minha saúde e do meu bem-estar. E eu gosto, sabe? Sou vaidoso. Gosto de roupa. Gosto de cerveja. Então se surge uma oportunidade de fazer uma parada pra uma cerveja que eu gosto de tomar, vou fazer. E pra uma marca que eu gosto de usar também. Sei que algumas pedras virão em alguns momentos mas eu vou ter que receber o golpe e seguir o baile.
Caetano, Emicida, Rael, Fioti, Liniker, Tulipa Ruiz. Saia justa: um show pra assistir. Não pode ser o seu.
Isso é uma covardia enorme, mas eu vejo a Liniker como algo grande na música brasileira. Canta muito. Isso conta. Uma coisa é fazer sucesso – isso acontece. Um moleque com um timbre massa, um bordão legal: a música tem muito disso. Mas tem aquelas coisas que são muito boas, e Liniker é uma das vozes massas de afinação, domínio, performance. Eu assistiria a todos, mas pra dar um axé pra um só, ela. É uma artista extremamente necessária para o momento. Liniker é a superação dessas adversidades e tem um talento incrível.
Qual o melhor artista de hip hop hoje?
Eu. (risos)
Escolhe qualquer pessoa pra gravar uma música.
MC Livinho.
O que é um domingo perfeito?
Comida boa, música boa e folga.
Qual a pior música que você já gravou?
Não posso falar!
Mas sabe?
Sim.
Qual teu maior medo da vida?
Saúde.
Qual teu look favorito?
Atualmente é jeans.
Você tem algum truque de estilo?
Tenho um lance com tamanhos de peça.
Maiores ou menores?
Uma calça justa me leva a outras roupas mais largas. E o contrário também. Meu metodismo virginiano. (risos)
Qual foi a ideia mais idiota que você já teve?
São muitas…
Qual foi a última?
Limão na lasanha. Não combina. Eu gosto de por um limãozinho na comida, mas tinha lasanha. Aí num foi.